Num mundo em que a pressa e a superficialidade são constantes, ler Clarice Lispector é um luxo porque exige de nós uma parada significativa.
Clarice nos possibilita uma visão não estereotipada do mundo, permite-nos voos imaginativos e mergulhos para dentro do mais profundo de nosso ser. Faz de nós seres grandes para sonhar e pequenos para ver que, apesar do sonho, muitas vezes a realidade plausível, mais forte e poderosa do que nós, vai se impondo como a única possibilidade, restando-nos um trago de criatividade para viver de uma forma gratificante.
Clarice é uma exímia construtora de personagens. Com sua linguagem exata e contundente consegue, em poucas palavras, desenhar personalidades, marcar comportamentos, delimitar paradigmas. E ao mesmo tempo, é capaz de transcendê-los, pois sua linguagem vai, aos poucos, construindo e desconstruindo verdades, criando e recriando o mundo.
Clarice na cabeceira, a mais recente publicação póstuma de seus contos, traz alguns depoimentos de seus leitores contemporâneos famosos, como Beth Goulart, Luis Fernando Veríssimo, Lia Luft…Todos unânimes no gosto pela leitura, na paixão por Clarice. Todos com Clarice na cabeceira e no coração. Em cada conto escolhido e comentado por esses leitores, uma oportunidade única de descobrir Clarice e descortinar o mundo. O dela e o nosso.De todos os contos reunidos, “Amor” é sui generis, pois, nas mãos de Clarice, o amor torna-se matéria rara, fruto de uma experiência fugidia, porém transformadora. Para Ana, sua protagonista, o amor vem como sentimento incomum e desconfortável por um desconhecido, um cego mastigando chiclete. Sua visão, do interior de um bonde, traz à vida da dona de casa inquieta um instante de vislumbre, epifania, insight.
Vendo o cego, Ana vê, em sua cegueira de mulher que não se permite sentir o vazio de seus dias, a inutilidade de seus esforços de tornar a vida perfeita e bela. É a visão do cego que traz à tona toda sua instabilidade e carência, concretizadas em gesto incerto que derruba a sacola e quebra os ovos dentro do bonde, afogando-a num misto de espanto e ternura. Nas palavras do narrador: “Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa”. E nós, leitores de Clarice, inevitavelmente nos vemos nessa dança alucinada de alguém que, de repente, toma consciência de si. Melhor para nós, leitores apressados de um mundo pós-moderno que insiste em nos levar para longe de nós mesmos. Com Clarice na cabeceira isso é impossível, pois ela está aí para nos mostrar que sempre há uma “bondade extremamente dolorosa” dentro de nós que quer alçar voo e clamar por dias mais iluminados.
Marcados pela epifania dos personagens, saímos da leitura de Clarice potencialmente mais capazes de nos entendermos e de entender o mundo que nos rodeia. Por isso, poder parar e dar-se ao luxo de ler Clarice hoje é um privilégio que todos nós devemos desejar, pois a imersão em seu universo ficcional sempre nos permitirá uma leitura mais madura do nosso.
Vera Paráboli Milanese
Psicóloga, doutora pela Unesp e pós-doc pela USP; é membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura de Rio Preto